A Diretoria do IAB/SC – Instituto dos Arquitetos do Brasil/Santa Catarina
subscreve por meio desta Nota Pública a manifestação do Núcleo do IAB da
Grande Florianópolis sobre o projeto de revitalização da “Ponta do Pitoco”, na
Lagoa da Conceição em Florianópolis.
Esta Nota vem contribuir com o debate público sobre o processo de
transformação da Ponta do Pitoco (como é chamada a parte insular direita no
centrinho da Lagoa da Conceição, às margens da ponte que leva à Avenida
das Rendeiras), de forma a destacar questões urbanísticas e a importância
ambiental e paisagística da área, e também evidenciar o conflito com posições
divergentes entre a gestão municipal e moradores do bairro. Esta nota
considera e soma-se portanto a reportagens publicadas em diferentes meios,
ao acompanhamento do caso por parte de moradores e usuários da área verde
em questão, e aos recentes acontecimentos envolvendo a participação do
Ministério Público Federal, que determinou a retirada dos equipamentos e
materiais referentes à obra da lagoa.
O projeto para a Ponta do Pitoco aborda questões importantes desde o ponto
de vista urbanístico, prevendo melhorias na acessibilidade e mobilidade urbana
(as melhorias são bem-vindas, embora não seja evidente a prioridade ao
transporte público). Por outro lado, e não menos importante, o projeto
desconsidera aspectos igualmente importantes desde o ponto de vista
ambiental, da paisagem e das infraestruturas, além de não ter dialogado de
maneira efetiva com a população local. Uma intervenção urbana na Ponta do
Pitoco deveria entender a complexidade daquele espaço, não cabendo
abordagens parciais e descontextualizadas.
O projeto arquitetônico e paisagístico para a área pública na borda da lagoa na
Ponta do Pitoco propriamente prevê a construção de uma faixa cimentada de 2
metros de largura sobre a área gramada da Ponta do Pitoco, paralela à via.
Essa obra reduziria consideravelmente a área de cobertura verde. A mesma
faixa cimentada seria prolongada cerca de 3 metros adentro e sobre o
gramado, com vigas baldrames concretadas a cada metro e ao longo de toda a
faixa de calçada, com um piso de deck de madeira, sem previsão dos pisos
podotáteis ou sinalização auditiva.
Na última proposta de alterações apresentadas, verifica-se a ausência da
continuação da acessibilidade pretendida com o projeto, a segregação das
atividades de uso do local, de forma a alterar e interferir no uso cotidiano desse
espaço, pelos moradores, prejudicando o sentimento de pertencimento,
anulando o livre direito de ir e vir ao espaço comum a todos na vizinhança.
Estas situações decorrem da proposta de reduzir a área de cobertura vegetal,
diminuindo a permeabilidade do solo, quando poderia ter ocupado a caixa de
rua, reduzindo-a para um único sentido, pois é uma via de transito secundária.
Evidencia-se que o projeto foi concebido desconsiderando a relação com o seu
entorno, posto que não está inserido em nenhum programa de mobilidade e
não foi realizado Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV).
Cabe salientar que a parte do Ponta do Pitoco objeto do projeto proposto não
corresponde à área total da mesma, definida no mapa ambiental de
Florianópolis. Esta continua para além dos condomínios às margens da Lagoa.
É uma área de APP, que não permite instalação de cancha esportiva (mesmo
gramada), instalação de academia, instalação de parque infantil, alambrados
ou caixa desarenadora, nessa área de orla ambientalmente sensível ao
panorama das mudanças climáticas. Caso houvesse um estudo no entorno
imediato ou EIV, o mesmo confirmaria a necessidade de: continuidade da área
contemplativa ambiental; a apresentação de um Plano de Mobilidade
interligando essa às demais áreas do bairro; investigar a procedência dos
dejetos da vala de drenagem ali existente. Sugere-se, embora já com parte da
proposta executada, que sejam realizados programas de educação ambiental
que poderão subsidiar visitas didático-pedagógicas e guiadas ao local, como
forma de conscientização e fomento à sua preservação.
De um modo geral, a proposta apresentada pela prefeitura supõe uma
mudança no caráter da Lagoa da Conceição tal como a conhecemos, o que por
si só deveria ser objeto de uma reflexão mais aprofundada. Nos discursos que
acompanham o projeto, a Lagoa da Conceição deveria “fortalecer a sua
centralidade”, o que implicaria preparar o bairro para uma maior intensificação
de usos, o aumento populacional, aumento da densidade, e dos fluxos de
pessoas e veículos. Este é o “debate de fundo” sobre o qual emerge o projeto
para o espaço da Ponta do Pitoco.
Uma nova centralidade para o distrito deveria entender as características e
limitações ambientais intrínsecas deste território frágil ambientalmente que ao
mesmo tempo conta com uma paisagem única, restinga e dunas e áreas de
moradia de comunidades de pescadores tradicionais. Em que pese a diretriz
urbanística do novo Plano Diretor de Florianópolis de se estabelecer nova
centralidades, claro está que não é possível considerar adensamentos e
aumentos de gabarito da mesma maneira em toda Florianópolis, ignorando
aspectos ambientais específicos, a importância da paisagem e a capacidade
da infraestrutura de cada distrito. A Lagoa já sofre com grande pressão
imobiliária sobre áreas ambientalmente sensíveis. Aplicar à Lagoa um discurso
genérico de criação de nova centralidade pode buscar legitimar a construção
de empreendimentos imobiliários maiores e de maior impacto, quando é
inegável que existem limitações dadas pelas características excepcionais e
únicas desde o ponto de vista ambiental e de paisagem.
Existem outras questões inadiáveis na Lagoa da Conceição, que viveu
desastres ambientais recentes, como a falta de infraestruturas de saneamento.
Uma suposta “nova centralidade” na Lagoa precisa obrigatoriamente
equacionar o saneamento básico. Porém não está comprovada a capacidade
de atendimento à demanda do saneamento existente, sendo indevido planejar
maiores adensamentos. A questão do saneamento tem sido um tema
recorrente na voz dos moradores da Lagoa da Conceição em qualquer debate
sobre o bairro.
Igualmente excepcional no caso da lagoa é o tratamento da borda d’água, já
bastante privatizada (em que pesem ações para reconquistar estes espaços
muitas vezes privatizados irregularmente), sendo que o projeto de revitalização
do Pitoco propriamente tem seu foco principal na remodelação de uma área
verde pública na borda d’água. Qualquer intervenção neste território tão
singular deve observar conjuntamente diretrizes ambientais e de paisagem,
para a pesca artesanal, maricultura, transporte público marítimo, programas de
habitação social, regulamentação das APPs, ampliação das áreas verdes e
aumento do nível do mar em consequência do aquecimento global.
É importante destacar Ponta do Pitoco não era um espaço “abandonado” antes
do projeto. O conjunto dos moradores imediatamente lindeiros e os das
proximidades das quadras vizinhas, utilizavam diariamente e também
mantinham essa área em seu aspecto original, de forma voluntária e
artesanalmente, nunca impedindo ou segregando seu uso. Ao contrário, estes
moradores facilitavam o livre acesso ao contato com uma parte preservada,
naturalmente arborizada, na beira da Lagoa, como um verdadeiro oásis numa
área urbanizada, justamente por ter esse aspecto simples e desprovido de
acessibilidade. Estes moradores deveriam ser ouvidos, sua proximidade
garante autoridade a eles, por se tratar de uma área sensível e que
diretamente lhes afeta e defendem majoritariamente a manutenção da área do
jeito que ela é, em seu estado natural, sem nenhuma intervenção construtiva.
Muitos destes moradores expressaram sua contrariedade quanto ao processo
e quanto ao projeto de revitalização da Ponta do Pitoco. Somam-se a estes
moradores, algumas associações e moradores de outras partes da lagoa que
defendem para o bairro a preservação ambiental e da paisagem da Lagoa.
Durante o projeto e execução da obra, a gestão municipal tem subestimado a
participação efetiva dos moradores da região. O diálogo institucional parece ter
legitimado seu projeto dando voz seletivamente a apenas uma das
associações de moradores e aos médios e grandes empreendedores locais
como se fossem representantes do todo, ignorando as vozes divergentes.
Diferentes vozes têm se manifestado em relação ao projeto para o Pitoco,
embora com capacidade desigual de alcance midiático. Claro está que os
interesses do mercado imobiliário não correspondem às necessidades dos
moradores neste caso.
O IAB defende processos democráticos e abrangentes nos quais a população
seja necessariamente ouvida e participe da definição do destino das cidades.
Neste sentido, o IAB declara apoio ao movimento que passou a ser
popularmente conhecido como “Ponta do Pitoco Verde” e a Tutela Cautelar
Antecedente em Ação Popular, que tem como objetivo justamente o de manter
e proteger esse patrimônio natural e paisagístico, que se vê ameaçado, para a
comunidade de moradores locais, do seu entorno e para aqueles que quiserem
visitar e conhecer.
O IAB/SC coloca-se à disposição para debater, participar ativamente e orientar
tecnicamente as discussões sobre a salvaguarda do patrimônio natural e
paisagístico neste caso, da maior relevância e interesse para arquitetos e
urbanistas em Santa Catarina. Da mesma maneira, insta que os órgãos
responsáveis cumpram a sua função de defender o interesse coletivo e
proteger e salvaguardar o patrimônio natural e paisagístico nas cidades
brasileiras.
Florianópolis, 20 de fevereiro de 2024.
Diretoria do IAB/SC
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