No dia 22 de dezembro de 2016, vésperas do Natal, o governo federal editou a Medida Provisória 759 alterando 19 atos normativos federais editados entre os anos de 1946 a 2015, dentre os quais todas as disposições sobre regularização fundiária da Lei 11.977/2009, que tem sido usada como grande referência normativa da experiência recente de regularização fundiária pelo Brasil.
A publicação desta MP, de grande repercussão nas formas de produzir as cidades e o território, durante as festas de fim-de-ano e sem debate prévio, causou surpresa nas instituições que discutem as cidades e seu desenvolvimento. “Trata-se de “um verdadeiro presente de Natal para os falsos loteadores das terras urbanas, desmatadores e grileiros de terras públicas na área rural”, afirma o documento “Carta ao Brasil: MP 759/2016 – A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil” lançado em 08/02/17 por mais de 90 entidades e disponível como abaixo-assinado na Internet.
Segundo a Carta, a MP 759 extingue os critérios que asseguram o interesse social na matéria. “A medida rompe com regimes jurídicos de acesso à terra, de regularização fundiária de assentamentos urbanos – tais como ocupações e favelas -, altera as regras de venda de terras e imóveis da União e da Política Nacional de Reforma Agrária. Em situações de conflitos de terra, sejam rurais ou urbanos, assentamentos organizados ficam impedidos de defender-se a partir do princípio da função social da propriedade; das disposições das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); com base no usucapião; ou com base na desapropriação do artigo 1.228, §4º do Código Civil”.
O documento afirma ainda que com a MP 759, “a regularização fundiária, um direito conquistado ao longo de anos de luta de movimentos e organizações sociais, torna-se um pretexto para concentração de terras e para a anistia de condomínios irregulares de alto padrão, que inclusive podem estar situados em áreas de preservação”.
Entre as entidades signatárias da Carta estão a ABEA (Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo), a FNA (Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas), o IAB/BA (Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento da Bahia), o SASP (Sindicato dos Arquitetos do Estado de São Paulo), o FNRU (Fórum Nacional da Reforma Urbana), o Polis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais), a UNMP (União Nacional por Moradia Popular), o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e o IBDU (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico).
INCONSTITUCIONALIDADE E ILEGALIDADE – Um debate a respeito, promovido pelo IAB/SP, em conjunto com o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, lotou o auditório da entidade no ultimo dia 01/02. Uma das participantes, a advogada Rosane Tierno, ex-gerente de projetos do Ministério das Cidades, apontou diversos aspectos de inconstitucionalidade e ilegalidade na MP. Segundo ela, o documento desmonta todo um sistema de regularização fundiária urbana exitoso, sem propor nada em seu lugar.
“A Lei 11.977 se enquadra perfeitamente na Constituição, foi bem recepcionada pelos Municípios e serviu de base para muitos provimentos da Justiça sobre regularização fundiária e imobiliária. Enfim, ela criou um arcabouço jurídico e normativo que já permitiu a inclusão de mais de 400 mil famílias na área formal das cidades e tudo isso agora vira tábula rasa. Não há como entender, então, a edição de uma MP para tratar de um tema já pacificado em regime de urgência”.
CONFLITOS DE LEGISLAÇÃO – Como muitos Municípios adotaram os princípios da Lei 11.977 na elaboração de seus Planos Diretores, se a MP não for alterada e virar lei, “teremos um conflito de legislações que não se conversam”, alerta a advogada Rosane Tierno. Um dos princípios, previsto no Capítulo III, considera para efeitos de regularização fundiária os assentamentos urbanos incluídos no perímetro urbano definido pelos Planos Diretores ou na área urbana consolidada, isto é, com malha urbana implantada e no mínimo dois equipamentos de infraestrutura (drenagem de águas pluviais, esgotamento sanitário, estabecimento de água potável, distribuição de energia elétrica e limpeza urbana).
“O termo assentamento para definir área fora da conformidade da legislação urbana é adotado nacional e internacionalmente, separando-se em irregulares e informais. A MP extingue o conceito e propõe um novo, o “núcleo”, podendo ser núcleos urbanos informais ou núcleos urbanos informais situados em zonas rurais. Além do conflito das nomenclaturas, a MP invade a competência dos Municípios ao permitir que áreas rurais sejam regularizadas como urbanas sem levar em conta a legislação local”.
Outro conflito é a extinção do conceito de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), incluído no Estatuto da Cidade como um dos instrumentos de política urbana e já disseminado nas legislações municipais. “Isso tem um impacto enorme, em especial para as áreas de maior vulnerabilidade, pois cria dúvidas sobre legislações e instrumentos existentes, transmitindo uma insegurança jurídica”, diz Fernando Túlio Salva Rocha Franco, presidente do IAB/SP.
TRATAMENTO DESIGUAL – O IBDU é um dos signatários de “Carta ao Brasil” que mais de oitenta entidades – entre elas o Fórum Nacional da Reforma Urbana e o Instituto Polis – lançaram sobre o tema em 08/02. Entre vários aspectos, a Carta chama a atenção para o tratamento desigual que a MP 759 cria ao estabelecer duas modalidades de Regularização Fundiária Urbana.
Uma delas é a Reurb-E, ou de interesse específico, aplicável a áreas urbanas ocupadas por população que não se qualifica como de baixa renda. Ou seja, as ocupações de alto padrão, como condomínios fechados e loteamentos em áreas de preservação ambiental. Eles terão flexibilizadas as condições de regularização sem exigência de nenhuma contrapartida. Outra modalidade é a Reurb-S, de interesse social, para as áreas ocupadas predominantemente por população de baixa renda. Nesse caso, denuncia a Carta, as dificuldades serão maiores, pois serão extintos diversos mecanismos que garantiam um tratamento prioritário para as áreas de interesse social por parte do Poder Público, como requalificação urbanística, licenciamento ambiental diferenciado e obrigação dos loteadores irregulares e grileiros de terras públicas a promoverem a adoção de medidas corretivas.
“Ou seja, a MP privilegia quem está em situação irregular por opção e prejudica quem está irregular por não ter outra opção para ocupar o que esta da cidade”, afirma o arquiteto e urbanista Patrick Carvalho, ex-Secretário Adjunto da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), também presente ao seminário do IAB/SP.
“Com a conversão da MP em lei condomínios fechados, que na realidade foram aprovados como loteamento e, portanto, deveriam disponibilizar suas ruas e praças para o uso público serão regularizados sem qualquer contrapartida, o que significará a privatização dos espaços públicos, de que todos poderiam desfrutar, resultando ainda em maior segregação socioterritorial nas cidades”, afirmam os advogados Luciana Bedeschi e Paulo Romeiro, especialistas em direito urbanístico e ambiental, em artigo publicado pelo Nexo Jornal em 08/02
PRIVATIZAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO – Na legislação atual, a desafetação de uma área de uso comum do povo (por exemplo, uma rua), ou imóveis públicos, necessita aprovação legislativa. Só assim elas passam a ser bens domiciais que podem ser alienados, pois não teriam mais uma destinação pública específica. A MP 759, contudo, dispensa a desafetação nos casos de Reurb.
“Fica, assim, aberto o caminho para a a privatização dos espaços públicos existentes, e exigidos por lei, nos condomínios fechados”, diz Rosane Tierno. “É a abertura ao interesse privado de todas as áreas públicas, sem critérios de ocupação que não os da tolerância total”, diz Renato Nunes, conselheiro federal do CAU/BR por São Paulo.
A medida invade a competência municipal constitucional de gestão do seu território e principalmente de suas áreas públicas. Da mesma forma, fere a competência municipal, isentando o pagamento do IPTU e da ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Imóveis), atribuições exclusiva dos Municípios, afrontando as Normais Gerais de Direito Tributário e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
A “Carta ao Brasil” diz que a MP 759 camufla grandes negócios ao promover a liquidação do patrimônio da União (terras e águas federais), sem critérios de interesse público e social, em benefício do mercado imobiliário e dos grandes empreendedores público-privados.
Os advogados Luciana Bedeschi e Paulo Romeiro afirmam que a MP 759 representa “um assalto em diversas frentes ao território brasileiro”, pois aprofunda o processo de privatização do Brasil e impede o acesso democrático à terra nas cidades, no campo e na Amazônia Legal: “o que está sendo vendido como tentativa de desburocratização e aumento da eficiência na gestão do patrimônio público, na prática esconde a possibilidade de transferência desse patrimônio e de recursos naturais sem qualquer critério de interesse social ou coletivo, na medida em que o governo terá carta branca para alienar esses imóveis. Um efeito perverso dessa possibilidade de alienação sem qualquer critério será, por exemplo, a legalização da grilagem de terras públicas, inclusive na Amazônia Legal, representando uma séria ameaça ao patrimônio ambiental brasileiro e aos modos de vida tradicionais”.
CARÁTER DISCRICIONÁRIO – A MP cria o instrumento de titulação “legitimação fundiária” que já surge, segundo Rosane Tierno, com várias máculas jurídicas: não informa em que título ele será registrado, não tem previsão legal para registro e não apresenta qual a distinção essencial da “legitimação de posse”.
Além disso, a “legitimação fundiária” tem um caráter discricionário, não sendo entendido como um dever do Poder Publico e direito da sociedade.
“A MP limita a regularização fundiária às áreas livres de demandas judiciais, ou seja, quase nenhuma. Um absurdo tal como a proposta do “princípio constitucional da eficiência na ocupação e no uso do solo”, conceito totalmente estranho ao mundo jurídico, sem qualquer dispositivo que explique a explique a razão de sua inserção”, afirma Rosane Tierno.
Outro ponto questionado é a extinção da demarcação, que possibilitava o registro da regularização fundiária de um único assentamento formado por várias matrículas com titulares de domínio distintos
DIREITO DE LAJE – A MP 759 incorpora o chamado “direito real de laje”, que é a possibilidade do proprietário vender a outra pessoa um segundo pavimento de seu imóvel, com matrículas separadas. Alguns juristas dizem que isso seria desnecessário, por superposição ao “direito de superfície” previsto no Estatuto da Cidade.
“Há entretanto uma diferença importante. O direito de superfície permite a regularização por fração ideal, o direito de laje não. Isso o torna quase inexequível, pois entre as lajes existem outras construções auto-construidas, como a escada do lado de fora das casas, que só podem ser regularizados se tiverem um responsável técnico, o que dificilmente será possível obter”, diz Rosane Tierno.
Foto: Rafael Schimidt/IAB-SP
Para o conselheiro federal Renato Nunes, é preocupante a concessão de “direito real de laje” sem qualquer fundamento ou preocupação com a segurança da edificação. “Além do que, haveria uma desordem quanto ao espaço construído resultante, em razão da evidente generalização da medida”. Patrick Carvalho lembra que, nessas comunidades, é corriqueira a existência de áreas de uso comum que garantem o acesso a todos os moradores e pergunta como será garantida sua manutenção.
NECESSIDADE DE MAIOR DEBATE – Outra crítica que se faz à MP é ao fato dela tratar de uma gama enorme de assuntos, ou seja, regularização fundiária rural e urbana, a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária, regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e novos procedimentos para a alienação de imóveis da União. Isso tornou o documento complexo, em alguns pontos contraditórios, que pode dar margem a leituras e interpretações diversas, o que contradiz a boa prática legislativa.
A arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo, afirma que a MP tem muitos pontos que exigem uma maior discussão, principalmente as universidades, “sob pena de perdermos o que foi todo o processo de construção das propostas de urbanização de favelas, de direito à cidade e regularização fundiária”.
Em sua página no Facebook, Maricato afirma que “muitos são os interesses que deram origem a essa MP. Entre eles podemos citar alguns legítimos como a necessidade de facilitar a ordenação jurídica do caos fundiário que 500 anos de domínio oligárquico ligado à propriedade da terra e imóveis produziram no país. No Brasil convivem, legislação e procedimentos burocráticos e cartoriais exagerados no uso e ocupação do solo (urbano especialmente) com uma gigantesca confusão registraria e absoluto laissez faire em grande parte das nossas cidades. Entretanto ao invés de superar o atraso presente na ocupação do espaço rural e urbano, que exigiria enfrentar a tradição patrimonialista ao mesmo tempo em que busca ajustar condutas, o projeto propõe uma complexa, diversa e confusa colcha de retalho contendo muitas imprecisões além de se afastar da questão central que gera tanta confusão: a desigualdade de acesso à terra e à cidade. Nada se fala sobre a figura prevista na Constituição Federal, a ignorada “função social da propriedade” . Aparentemente a diversidade das medidas visam satisfazer alguns dos interesses do “Partido da Terra”. Poderia citar algumas como é o caso de loteamentos ou empreendimentos construídos em áreas ambientalmente frágeis, ou sobre terras da União, mas penso que, com o tempo, elas se ampliarão e ficarão mais evidentes”.
Foto: Rafael Schimidt/IAB-SP
Para Ermínia Maricato, “deveríamos defender a rejeição da MP, não apresentar emendas, pois ela travou a prática da regularização fundiária como vinha se dando. São muitas coisas ruins. Quem elaborou essa Medida Provisória realmente não tem vivência no que é o espaço de moradia dos trabalhadores e da população pobre nas cidades desse país.”
O Departamento Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) promoverá em 21/02/17, mesa-redonda sobre a MP 759. Os especialistas que participarão das discussões são Maria Lúcia Pontes, defensora pública integrante do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria do Estado do Rio de Janeiro; José de Oliveira Martins, coordenador do Movimento Rocinha sem Fronteiras; Alex Magalhães, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ); e Arícia Fernandes Correia, procuradora responsável pela coordenadoria de regularização urbanística e fundiária da cidade do Rio de Janeiro. O evento, gratuito e aberto ao público, ocorrerá na sede do IAB/RJ (Beco do Pinheiro, 10), no Flamengo, a partir das 19h. Mais informações: iabrj@iabrj.org.br ou (21) 2557-4480.
Desde que foi editada, a MP já vale como lei, que continuará valendo ou não conforme a decisão do Congresso. Os parlamentares têm prazo regimental para votá-la até 02/04/17, prorrogável por mais 60 dias caso exista necessidade. Até 09/02, já tinham sido apresentadas 732 emendas de parlamentares. A partir de 19/03, caso não tenha sido votada, a MP passa a sobrestar a pauta do plenário na Casa onde estiver sendo examinada. Primeiro a MP passará pelo exame de Comissão Mista, depois pela Câmara e finalmente pelo Senado.
Fonte: CAU/BR
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