mdc . revista de arquitetura e urbanismo

Para que a nossa arquitetura tenha seu cunho original, como o tem as nossas máquinas, o arquiteto moderno deve não somente deixar de copiar os velhos estilos, como também deixar de pensar no estilo.

O caráter da nossa arquitetura, como das outras artes, não pode ser propriamente em estilo para nós, os contemporâneos, mas sim para as gerações que nos sucederão. A nossa arquitetura deve ser apenas racional, deve basear-se apenas na lógica e esta lógica devemos opô-la aos que estão procurando por força imitar na construção algum estilo.

Gregori Warchavchik

Considerações sobre o ofício da arquitetura no Brasil

Danilo Matoso Macedo

a ilusão da arquitetura sem estilo

Pode-se dizer que há cem anos almejou-se pôr fim à relação de dependência que a arquitetura tinha para com os estilos artísticos e para com os sistemas simbólicos deles derivados. Dentre todas as tentativas daqueles grupos mais ou menos articulados no ocidente talvez nenhuma tenha fracassado tão retumbantemente quanto esta, enunciada em praticamente todos os manifestos de então considerados modernos. De fato, não apenas persistiram os estilos históricos, como outros estilos foram criados a despeito e, sobretudo, a partir da prática daqueles arquitetos. Em que pese a queixa de Anatole Kopp,a Arquitetura Moderna nunca deixou de tratar dos estilos: ao contrário, reforçou neles o foco do discurso arquitetônico.

Mais que criar um novo estilo, no Brasil, o discurso moderno esteve fortemente ligado à legitimidade da prática profissional – “no nosso caso, da década de quarenta em diante – Arquitetura é Arquitetura Moderna. Se não é Arquitetura Moderna não é Arquitetura, tout court.”Não bastasse a hegemonia do estilo moderno no Brasil, seu questionamento, a partir da década de 1960, exacerbou justamente os aspectos relacionados às feições externas das construções. Parecia não haver escapatória: a prática de Arquitetura Moderna ou Pós-moderna era simplesmente uma questão de estilo.

Até hoje, as publicações de arquitetura concentram-se neste aspecto. E defendem-no os arquitetos com unhas e dentes em encarniçadas disputas intelectuais – nos seminários acadêmicos – e profissionais – nos concursos de arquitetura. Discute-se, nas obras, o minimalismo, o modernismo, o pós-modernismo e qualquer novo “ismo” que vier a surgir – quanto maior a aproximação entre réplica e protótipo estilístico, melhor. Este argumento pode ser facilmente verificado em qualquer revista de arquitetura com mais de vinte anos de idade: veremos a sucessão do historicismo, do deconstrutivismo, do minimalismo, culminando hoje no pseudo-futurismo, no neo-modernismo holandês– ainda carentes de denominação. Sabe-se, certamente, que não se verá hoje uma casa de Michael Graves na revista espanhola AV: o estilo pós-moderno saiu de moda.

Sabemos, entretanto, que a construção envolve mais que estilo. Envolve todas as questões de que se ouve falar desde o primeiro ano no curso de arquitetura, mas que são relegadas a segundo plano ao longo da carreira profissional pela maioria de nós: custo, processo de contratação do arquiteto, dos demais projetistas e do construtor, tempo de obra, técnicas construtivas, compatibilidade e durabilidade dos materiais etc.

No campo da construção, a arquitetura é demandada sobretudo quanto à integridade e durabilidade dos objetos propostos. A integridade, em oposição à tendência dos materiais à desagregação, é um dos bodes expiatórios das vanguardas do século XX. A luta das vanguardas contra a integridade tradicional dos edifícios – associada aos historicismos – culminou na paradoxal associação, recentemente promovida no métier, entre falta de integridade e boa arquitetura. Arquitetura envolve ainda durabilidade. E durabilidade nos exige pensar além da última moda, além dos estilos passageiros, afinal o edifício vai durar mais que eles. A durabilidade contém, em si, dois outros importantes fatores derivados: a economia de recursos para reforma e manutenção, e a adaptabilidade do edifício a diversos usos.São critérios objetivos de concepção e análise de projeto que raramente vêm à tona no discurso arquitetônico, e aos quais, ao fim e ao cabo, todo estilo presta contas.

Não há dúvidas de que, não apenas a arquitetura ainda é pensada em termos de estilo, como também esta é a discussão majoritária em nosso campo. É a discussão de estilo que subjetiviza todo e qualquer juízo de valor acerca de uma obra. E, se por um lado ela tem gerado a exaltação de profissionais e edificações de mérito duvidoso, por outro lado é o que assegura ao campo arquitetônico sua reserva de mercado. O estilo está no cerne do capital simbólicoque acaba por resguardar o lugar social dos profissionais. Pode-se facilmente constatar este fato na arrogância de qualquer estudante de arquitetura de primeiro ano, que acredita serem aqueles dois semestres de estudo, no campo da história da arte, suficientes para garantir-lhe competência e capacidade de discernimento superiores aos de qualquer engenheiro com cinqüenta anos de ofício. No Brasil, entretanto, os efeitos desta exclusão sistemática dos demais temas são mais perversos.

rebeldes sem causa

Ocorre que, na Europa, Estados Unidos, Canadá, e mesmo no Chile, Argentina ou Uruguai, a arquitetura é profissão bastante regulamentada – e as cidades são melhor construídas, diga-se de passagem. A regulamentação significa, principalmente, que naqueles países a prática de arquitetura segue diversos padrões normativos expressos tanto na legislação quanto nas normas técnicas elaboradas pela própria corporação. Significa ainda que um arquiteto com trinta anos de experiência não possui a mesma habilitação profissional que um recém-formado, coisa que ocorre no Brasil – onde ambos estão habilitados legalmente a assinar o projeto de um aeroporto internacional. Aqui, ao ouvir falar de normas, alguns colegas gabam-se de desconhecê-las. Afinal, um artista não conhece normas: tem coisas mais importantes de que se ocupar – como a feição minimalista, colonial, deconstrutivista ou holandesa de seu projeto. Se nos países mencionados o arquiteto orgulha-se de assumir para si a responsabilidade do projeto – e por isso cerca-se das normas, das leis e dos seguros profissionais -, no Brasil os arquitetos orgulham-se em não assumir responsabilidade alguma. Não nos responsabilizamos pela construção nem pela eficiência, pela integridade ou durabilidade do artefato entregue e, consequentemente, negligenciamos as gerações do futuro obrigadas, enfim, a lidar com palácios de papel e com as cidades caóticas que legamos.

As normas – a própria base do Estado Democrático de Direito, o cerne do contrato social -, que permitiriam uma convenção profissional: são elas as grandes negligenciadas pela arquitetura nacional.Conta-se nos dedos das mãos as normas da ABNT diretamente ligadas à arquitetura.Basta dizer que até hoje não possuímos sequer uma norma de Projeto Executivo e compatibilização de projetos, e que o grande manual de medidas e padrões usado em escritórios brasileiros – o Neufert – foi feito na Alemanha há mais de sessenta anos.

No Brasil não há padronização de materiais, de medidas, de metodologia de projeto ou de sistemas construtivos. Não há padrões organizacionais para os escritórios de arquitetura, improvisados em ateliês semi-domésticos, e não há padrões sérios de contratação de serviços de arquitetura – onde os próprios arquitetos trabalham ilegalmente. Os parâmetros de desempenho técnico restringem-se aos mirrados códigos de edificações – a maioria elaborada por engenheiros há pouco menos de cem anos – determinando cones de iluminação, tamanho mínimo de aberturas e de cômodos. Há poucos e louváveis estudos objetivos em nosso país sobre o custo das decisões arquitetônicas. Os aspectos estéticos, formais, simbólicos e sobretudo estilísticos dos edifícios são, entretanto, pisados e repisados em publicações, seminários, bienais, e nos cursos de pós-graduação.

Evidentemente, a prevalência deste tipo de abordagem estilística em nosso meio deve-se às vantagens simbólicas de dominar este tipo de discurso – mesmo que apenas intuídas por alguns dos nossos inadvertidos colegas. Quanto mais mágica e inexplicavelmente irracional uma decisão de projeto se torna, maior a fatia do mercado reservada pelo seu hermetismo.

Há, entretanto, um mercado restrito para esta prática, na qual a simples presença do arquiteto torna um objeto magicamente significativo: é o mercado das pessoas de poder e gosto. A consequência deste afunilamento é a restrição das demandas deste grupo àqueles que, originalmente, já pertencem a ele: os próprios arquitetos de poder e gosto. Que fique claro: a arquitetura no Brasil – e na maior parte do mundo – é atividade reservada aos provenientes de famílias ricas, poderosas ou tradicionais – não necessariamente nesta ordem. E, evidentemente, há exceções que confirmam a regra. Um breve estudo da biografia de nossos ídolos maiores – os arquitetos da chamada Escola Carioc], mostrará que, mesmo em se tratando de comunistas, alguns são mais iguais que outros.

É de se suspeitar que, no cerne de nossa alma colonizada, aqueles que detêm maior poder e gosto são os estrangeiros – preferivelmente os europeus. Daí o modo acrítico com que abrimos avidamente as revistas e livros de nossos colegas do hemisfério norte. Daí o modo submisso com que dedicamos nossas pesquisas às dores e penas que afligem os arquitetos norte americanos ou ingleses, deixando praticamente desconhecidos e abandonados os arquitetos e edifícios que fizeram e fazem as cidades brasileiras.

Os arquitetos europeus e norte-americanos preocupam-se com estilo, hoje, por não haver assunto melhor de que tratar: a profissão em seus países está reconhecida e normatizada, a indústria oferece diversos novos materiais com garantia de execução; as cidades possuem infra-estrutura urbana, transporte e teto para todos. Para um arquiteto americano, submeter-se às normas e convenções é condição para o exercício profissional, e a fuga das normas é um saudável exercício de invenção e rebeldia. E, ao copiar-lhe a atitude, o arquiteto brasileiro torna-se apenas um rebel without a cause…

construindo barato

Mas não apenas o processo de produção é diferente. Os objetos, aqui e lá, também são diversos entre si. A inclemência de seus invernos levou os europeus e norte-americanos a construir paredes e janelas que são verdadeiras máquinas de isolamento entre ambientes interno e externo. São máquinas cujo desempenho depende da qualidade dos acabamentos, das soluções de encaixe etc. E se uma máquina falha, a responsabilidade pelos danos causados é do arquiteto. Aqueles que já tiveram contato com a prática de arquitetura nos Estados Unidos, por exemplo, sabem do valor que o profissional prancheteiro norte-americano dá a uma wall-section: o âmago de sua solução e de sua profissão. Por isso, o processo construtivo nesses países é substancialmente mais caro e elaborado que no Brasil. Em nosso país, o clima ameno permite soluções construtivas simples, pouco estanques e pouco elaboradas. Nos trópicos, para usar a figura lembrada por Angelo Bucci em suas palestras: se alguém dormir na praça, não morre de frio. Faz sentido, portanto, sermos menos criteriosos quanto às vedações, quanto aos acabamentos, e quanto à performance dos materiais no que tange ao isolamento e à resistência às intempéries mais brandas. Não se justifica,entretanto, o desleixo com que tratamos a qualidade construtiva em nosso país.

São valores diametralmente distintos, os deles e os nossos, que não deveriam ser confundidos e misturados, como o são diariamente. São profissionais diferentes em sua inserção social, que produzem objetos diferentes para sociedades e lugares diferentes.

Dois exemplos recentes ilustram bem o exposto: a Cidade da Música, no Rio de Janeiro – projeto do francês Christian de Portzamparc e a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre – projeto do português Álvaro Siza. Ambas foram construídas quase inteiramente com concreto – a segunda, com concreto branco (ou seja: com cimento, areia e brita brancos e com aço galvanizado nas armaduras). Os peitoris desta foram feitos de mármore branco grego com espessura de cinco centímetros. Todo o interior do edifício foi revestido com estrutura metálica e coberto com painéis de gesso acartonado, dentro dos quais corre uma serpentina que auxilia no controle de temperatura. Evidentemente, o resultado é impressionante. Como também o é o da análoga Cidade da Música (construída por dez vezes o custo normal do metro quadrado vigente no país). Nem a Oscar Niemeyer ou a Paulo Mendes da Rocha – nossos dois Pritzker – teria sido dada tamanha liberdade orçamentária. É claro: o maior capital simbólico, para nós, ainda é o dos estrangeiros.

Nossa boca está torta pelo cachimbo da pobreza e – mesmo sendo um país rico – somente sabemos projetar e construir mal.

Nossos prédios necessitam de reformas significativas com menos de dez anos de vida: os revestimentos de fachadas despencam, a impermeabilização invariavelmente vaza, as portas e janelas emperram, as telhas voam com o vento… É possível, porém, atribuir qualidade construtiva a objetos de pouco valor diretamente agregado. Foi esta a façanha da arquitetura urbana do Brasil colonial, por exemplo, que inspirou os melhores dos nossos modernos. Não seria possível, portanto, uma arquitetura de qualidade pensada segundo nossos próprios parâmetros construtivos?

Se os exemplos em apreço nos ensinam algo, é que carece totalmente de sentido acreditarmos realmente que o que se publica em revistas internacionais – e consequentemente em revistas nacionais – pode ser transposto diretamente para nossa realidade.

Repetimos: são problemas diferentes de profissionais diferentes, em profissões diferentes, num contexto material o mais diverso possível.

campo profissional e sociedade

O ciclo do auto-engano tem início cedo. Normalmente, o estudante de arquitetura médio já entra na faculdade acreditando que, se tiver a chance, será o novo Niemeyer: que será capaz de comover a todos com seu talento e com a força de sua arquitetura, e que construirá os monumentos de sua geração – a questão de estilo é também uma questão de ética pessoal. Em seguida vem a primeira doutrinação: o estudo de história da arte como base para a história da arquitetura. Esta última, evidentemente, ensinada como história dos estilos. A missão do jovem arquiteto? Descobrir o estilo verdadeiro correspondente à sua época. Via de regra, tal é a meta de nossos colegas. Daí a sede pelo original, pelo novo – com a vantagem de ser menos trabalhoso que buscar seu próprio zeitgeist estudando história e proporções clássicas (mérito e esforço de alguns arquitetos das décadas de 1970 e 1980).

Não mencionamos nossas escolas e estudantes ao acaso. A diferenciação mítica entre inventor e construtor tem origem justamente no surgimento do ensino institucional, como preconizado na Academie Royale d’Architecture, criada por Colbert em 1671. Voltado para a formação dos architectes du roi – aqueles indivíduos encarregados do projeto e execução das obras públicas do reino de Luís 14 – e eivado por uma doutrina neoplatônica, esse ensino iria contribuir para a dissimulação da importância dos aspectos práticos da construção, enfatizando mais o caráter estético e formal das obras de arquitetura, deixando implícita sua concepção da profissão.

Da chegada da Missão Francesa ao Brasil, e com ela a concepção da Arquitetura Brasileira como exercício de estilo, já se passaram quase dois séculos. E até hoje a poucos ocorre que a questão aqui é anterior. Não percebemos que, antes de nos preocuparmos com estilo, deveríamos preocupar-nos com atender à sociedade a que pertencemos. Em lugar de acotovelarmo-nos tentando construir uns poucos monumentos, edifícios comerciais e casas de elite, deveríamos tentar padronizar e simplificar métodos de projeto e construção, de modo objetivo e duradouro. Profissionais carentes de capital simbólico internacional – a maioria de nós – teriam assim instrumental técnico para atender às comunidades de classe média e classe baixa – a que muitos pertencemos. São as regras, as normas simples, da boa técnica de projetar e construir que servem às demandas dessas pessoas.

Já apontamos, em outro texto, que basta um passeio pelo Google Earth para constatar que no mínimo 70% de nossas cidades foram construídas na ilegalidade, sem assistência técnica alguma de engenheiro ou arquiteto. A estatística que intuímos foi confirmada em reportagem veiculada recentemente na televisão sobre materiais de construção, mostrando que “23% dos produtos vão para grandes obras e 77% para as pequenas construções e reformas”. As grandes obras, não devem ser confundidas com os Grands Travaux: são simplesmente aquelas obras feitas por construtoras que contratam arquitetos, e para quem estes aprendem a trabalhar, como veremos adiante.

Aquele cliente médio, responsável pela construção efetiva de nossas cidades, nos propõe um desafio muito simples: ajudá-lo a planejar e a construir sua edificação. Para tanto, o profissional adequado é aquele que projeta, orça a obra e, preferivelmente, constrói a edificação. Aquele que se limita ao desenho arquitetônico força o cliente a contratar mais mão-de-obra, a resolver mais problemas – normalmente inventados por ele mesmo – e a consumir mais recursos. De fato, a legislação brasileirapermite ao arquiteto realizar o cálculo estrutural e os demais projetos complementares da maioria absoluta das tipologias edilícias que constituem nossas cidades. E poderíamos fazê-lo: realmente poderíamos assumir para nós essa responsabilidade. Deparamo-nos, entretanto, com dois problemas bastante difíceis de contornar.

O primeiro é nossa formação deficiente e nossa simples desqualificação para projetar e construir a íntegra de uma edificação – embora tenhamos habilitação legal para fazê-lo: as matérias ditas técnicas estão sendo gradualmente extintas dos cursos de arquitetura; as cadeiras de projeto, por sua vez, deveriam chamar-se cadeiras de anteprojeto, pois não costumam ir além dessa fase de desenvolvimento que – todo arquiteto sabe – não ocupa mais que 5% do trabalho e esforço destinado à elaboração de um projeto completo de uma edificação. As cadeiras de anteprojeto – adotemos a pecha – ensinam o arquiteto a enganar-se a si mesmo e a acreditar realmente que aqueles valores estilísticos ali elencados são relevantes para a cidade e a população. Afinal, enganando a si mesmo fica mais fácil enganar aos demais – é o capital corporificadoque auxilia na construção da idéia de magia e intangibilidade nos valores da profissão. Acresce que, mesmo quando aprendem a desenvolver projetos e detalhá-los, os estudantes são treinados para projetar dentro de um sistema produtivo relacionado a grandes edifícios – onde o arquiteto é responsável apenas pelo projeto arquitetônico, deixando as instalações, a estrutura e, é claro, a construção, a cargo de terceiros.

Quando este sistema é transposto do mundo acadêmico para a realidade do jovem arquiteto, há um conflito. O Brasil é carente de um sistema coeso de grandes escritórios – supostamente, os que são encarregados das grandes obras – onde aquele conhecimento restrito e segmentado é útil. A regra, portanto, é que o jovem arquiteto abra seu próprio escritório com outros colegas, onde se dedicará a pequenos projetos residenciais e de reformas – os 77%. Carente de instrução, o arquiteto aplicará os métodos de projeto descentralizados que aprendeu – envolvendo vários profissionais – a objetos pequenos, levando ao cliente a necessidade de contratar engenheiros para realizar o trabalho que poderia ser executado integralmente, com mais economia, celeridade e competência, pelo próprio arquiteto. De fato, há aqui um conflito entre o sistema de crenças que norteia e legitima a atuação profissional do arquiteto e a prática cotidiana de trabalho, determinada pelas condições de mercado.

O segundo problema, relacionado ao primeiro, diz respeito justamente ao lugar social do construtor – hoje inferior ao do artista/projetista. Afinal, a maioria de nós, senão todos, gostaria de atingir o mais elevado status social possível. Portanto, não seria um bom conselho ao arquiteto médio de hoje incentivá-lo ao domínio total do processo de produção das edificações.

Certamente, é mais atraente a ilusão de que se trabalha com invenções, em lugar das convenções implicadas por uma prática padronizada.Ilusão porque não há nada mais convencional que os processos culturais de inovação e de modas. Arquitetos fora destas convenções da invenção, por assim dizer, – todas ligadas ao estilo – não conseguem publicar projetos nem vencer concursos. É impossível hoje em dia publicar, em revistas como a AU ou a Projeto, uma residência neocolonial – por exemplo. Já nas revistas que a população compra, a história é bastante diferente, todos sabemos.

pensamento, técnica e conhecimento arquitetônico

Costuma-se objetar a nosso ponto de vista qualificando-o de tecnicista, ou de burocrático. Argumenta-se que, com tantas regras e normas, não se ensinaria os alunos a pensar. É evidente que o conceito de pensamento desses críticos é bastante restrito.

Acreditam eles, realmente, que a reflexão só tem lugar na forma de texto e no seio da escrita filosófica. Todo aquele com alguma experiência de projeto e construção sabe das dificuldades conceituais que envolvem o dia-a-dia do ofício, das centenas de pequenas e grandes decisões que devemos tomar para desenvolver uma construção. São as pesquisas materiais e as reflexões sobre as aptidões entre elas que permitem ao arquiteto conciliar num mesmo lugar vários componentes, e transformá-los em espaço construído. Não há porque qualificá-las num patamar inferior ao agrupamento de palavras para escrever um artigo teórico.

São, por exemplo, questões de compatibilização entre dimensões, de afinidade entre materiais, de sua resistência, do encaixe de uma esquadria para que a água não escorra para dentro do edifício, de uma simples e corriqueira solução de sanitários públicos que não cause constrangimento aos usuários. Tudo isso é matéria passível de construção cultural, de teorização, aprofundamento, e normalização – como se faria com a prática em qualquer outra profissão.

Mas para o arquiteto só existem a história dos estilos e as teorias que as legitimam. Aqueles temas “pragmáticos” são comumente relegados a segundo plano em pesquisas acadêmicas e mesmo nas publicações especializadas em projeto, onde habitam em suplementos técnicos – impressos em papel-jornal – e junto à publicidade de materiais.

E mesmo dentro da história dos estilos, é notável a incompetência de nosso campo para construir uma historiografia real e objetiva de nossas próprias cidades. Conforme já apontamos, os arquitetos e obras nacionais são solenemente ignorados na maioria das pesquisas de fundo histórico. Estas subordinam toda a nossa evolução a movimentos e estilos estrangeiros, sem tomar conhecimento de sua realidade mais próxima. A pouca história da arquitetura do século XX que construímos, por exemplo,

insiste em que os estilos neocolonial, e Art-Déco foram preparações para o moderno (falam até em proto-moderno), e que já se extinguiram, segundo a ordem natural das coisas. Um passeio por qualquer bairro de classe alta prova que os estilos históricos continuam bem requisitados e construídos – em casas e edifícios inteiros residenciais. Entretanto, carentes de historiografia oficial e de análise crítica cada vez mais decaem em qualidade construtiva e conceitual. Aquele que optar pelo uso de um

capitel, por exemplo, deverá adquirir pré-fabricados de gesso totalmente desvinculados dos modelos originais e carentes de integridade material. Evidentemente: usar capitel hoje em dia não é tarefa para arquiteto. O arquiteto, esse sim, fará um tremendo esforço para executar um rodapé embutido, um pano de vidro – para depois recobri-lo com brises -, uma parede fora do esquadro ou qualquer outro elemento dos estilos moderno ou deconstrutivista. “Era a solução natural que a técnica sugeria…” – ressoa o conhecido mantra

Não queremos, com isso, atacar nossa arquitetura moderna ou diminuir suas conquistas. Ao contrário: sugerimos aqui que a produção arquitetônica de nosso país seja estudada segundo seus próprios valores, construídos sobre sua própria história material.

A partir desta abordagem de sentido amplo, a adoção de cada estilo passa a ser simplesmente uma questão de hábito, de ofício, passado de geração em geração. Como bem nos lembra Álvaro Puntoni: não abdicar de uma inteligência construída talvez seja o ponto de partida para o estabelecimento de um possível e desejável denominador comum na Arquitetura Contemporânea Brasileira.Se um arquiteto aprende a projetar e construir bem em determinado estilo, ou modo, é mais produtivo que suas

invenções ocorram no seio daquela linguagem. Afinal, fazer experimentalismo com bens alheios é, no mínimo, inconveniente.

Convido a todo aquele que suspeitar de alguma mesmice excessiva derivada da hegemonia de alguma escola arquitetônica a visitar um subúrbio metropolitano e constatar que, certamente, a monotonia do que se vê nas revistas não poderá ser encontrada nas ruas – palco natural da pluralidade.

rumo à maioridade

Somos um país com diversidade de pensamento e riqueza suficiente para pôr fim a este complexo de inferioridade colonizado, que nos coloca sempre em condição de dependência conceitual para com os arquitetos estrangeiros.Dentre os muitos legados de Oscar Niemeyer à arquitetura nacional, talvez o mais relevante seja a demonstração de que não devemos e não precisamos nos colocar em condição de inferioridade em relação aos mestres europeus ou norte-americanos. Ao contrário: devemos criar os

valores e as condições culturais próprios para reconhecer e apreciar nossos mestres também e, sem xenofobia, aprendermos a dialogar em pé de igualdade com a cultura arquitetônica global. Para isso, antes de tudo, é necessária a produção de conhecimento a partir do que a sociedade espera de nós: que saibamos construir nossas próprias moradas.

Nesse sentido, e a modo de encerramento, convém apontar alguns fatores que podem ser decisivos para uma mudança radical de pensamento pela comunidade de arquitetos – projetistas e pesquisadores.

No campo da prática profissional, as oportunidades que se afiguram são únicas. A nova Lei de Assistência Técnica Gratuita enseja a formação de profissionais com perfil diferenciado, capazes de atender às demandas mais imediatas da população. Por sua vez, a iminente criação do Conselho Federal de Arquitetura, sugere a possibilidade de se estabelecer uma nova e mais extensiva

regulamentação das atividades do arquiteto, favorecendo sua qualificação como projetista e construtor plenos, e não apenas projetista de arquitetura. Vem ao encontro disso a explosão de cursos de arquitetura no Brasil, tornando-o “um dos países com maior número de arquitetos registrados“, apresentando “o maior número de escolas de arquitetura do mundo (…) o que significa que a quantidade de arquitetos tende a crescer ainda mais rapidamente.

No campo da pesquisa acadêmica, as novas demandas do Ministério da Educação quanto à produção dos pesquisadores nas Universidades tem levado a um aumento significativo no número de seminários e publicações. Cabe agora por um fim à repetição do que se diz alhures e à subordinação incondicional de nossa prática à estrangeira: cabe realizar levantamentos de campo, inventários, medições, pesquisa em documentação primária e outras atividades que lidem com a arquitetura a partir de fontes primárias, e não com publicações e textos alheios.

É preciso operar uma mudança nas expectativas que os arquitetos brasileiros têm de seu ofício, voltando-o para o atendimento de sua própria sociedade, e não para a comunidade arquitetônica internacional. Desta, esperam os aplausos. Mas só receberão outros arquitetos – e ávidos por trabalho.

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